A noite vai alta. A Sul, a lua reflecte-se nas águas brandas do rio. Mais adiante, conseguimos ver o mar, o nosso único refúgio. Os nossos batedores voltaram com boas notícias; um grupo de pescadores trouxe embarcações e pelo menos uma parte dos residentes poderão deslizar pelas águas até uma aldeia próxima sem levantar muitas suspeitas. O caminho apresenta-se livre, mas de forma a evacuar eficientemente a cidade, os restantes deverão seguir a pé, junto à margem. Tulfah olha-me com ar de muitas dúvidas. “Acreditas mesmo que vai resultar?” pergunta-me. Também, que outras hipóteses teremos nós, tal língua de terra a preparar-se para ser esmagada por uma tormenta marítima. Nos fundos da muralha, uma pequena grade é retirada… a saída para os esgotos, para o rio e para a nossa liberdade. Um pequeno grupo de soldados vai reunindo as mulheres, crianças e idosos que não abandonaram a cidade nos dias antes ao cerco. Serão eles os transportados pelos barcos. Todos os homens capazes ficarão para trás para cobrir-lhes a retirada. Teht está nas muralhas, não vá algum soldado inimigo aproximar-se demasiado da nossa zona de fuga. Vou acordar Maria. Encontro-a sentada na cama, pensativa, com as adagas no colo. Olha-me como quem vai explodir em justificações, motivos, razões… mas não temos tempo para tal. Ele urge como a areia fina do deserto foge por entre os dedos da mais forte mão. Apesar da sua aparente revolta, concorda em partir nos barcos. Não a poderia deixar ficar num lugar condenado, com tantas coisas que ainda temos que preparar. Não tenho dúvidas que ela conseguirá defender-se no futuro, e por Alá, o futuro dela não é aqui. Despedimo-nos na praça principal, em frente à mesquita. Entre a silenciosa multidão, perco-a de vista. A vida deles está entregue… Parto com Tulfah e Abdul para as muralhas. Os milhares de soldados que havia visto na praça dias antes, afinal não chegam aos mil. Houve desertores, fugas, medo… quando a vida dos que nos estão perto está em risco, o coração faz-nos ver que não é pelo escudo ou pela lâmina da cimitarra que se terá paz. Assim, partiram. Na verdade, apenas nós sabemos disso. Para um qualquer soldado que se encontre no exterior da muralha, contam-nos aos milhares. Em todas as muralhas, foram acesas mais tochas para arqueiros… aqui e ali as lanças emergem acima das ameias… muito mais lanças do que o total de homens que temos, mas a ideia é mesmo essa. Entre a farsa e a ilusão, olhos atentos espreitam sobre as linhas inimigas, tentando compreender qualquer movimentação. Tudo parece correr bem e espero, por todos os meus antepassados, que assim continue. “Teatro do poeta… se nos safarmos desta, será uma boa história para contar aos meus netos.” murmura Abdul. Gracejamos o quanto nos é possível neste tenebroso momento…
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