sábado, junho 20, 2009

Short Story - Paixão na Biblioteca

Era uma acalorada tarde de Verão. No ar, a única brisa, que se fazia sentir, era mais quente que o ar que expirava. Sentia os quarenta graus Celsius nos ombros como um escravo absorve cada chicoteada do seu amo. Aquando de mais uma investida por sombra, que no fundo me levava a percorrer todas as tascas e tasquinhas da cidade numa cambaleante indisposição, dei por mim às portas da biblioteca cá do sitio. Decidi entrar e deliciar-me com a modernidade e frescura proveniente das caixas brancas existentes por cima de algumas janelas. Creio que lhes chamam "Ar Condicionado", e diga-se de passagem que é uma coisa bem esgalhada. Encostei-me a uma janela e mirei o horizonte como que perscrutando por aquele inimigo que não se deixa ver... esperei. Limpei as gotas de suor que me desciam eminentemente pelo rosto enquanto a caixa branca vomitava frescura sobre a minha cabeça. Lá fora, silhuetas ténues dançavam à luz, criando a ilusão de coisas que realmente não estavam lá... ou estariam? Olhei o relógio e ponderei a permanência neste oásis de calma e frescura por mais uns momentos e porque não, aproveitar para por a leitura em dia. Afinal, não me lembrava da última vez que havia posto a vista sobre um livro. Já nem me lembrava do que continham... letras e imagens presumo, que para mim recordavam hieróglifos de tão distantes que agora estavam. Decidi mergulhar numa leitura reconciliante. Percorri vagarosamente os corredores da biblioteca em busca de algo que me saltasse à vista... não que os livros saltem, mas creio que compreendem o que quero dizer. Biologia, História, Geociências... cada secção, apesar de interessante, parecia menos acolhedora que a outra. Jornais? Nah... Diário da Republica? Nem pensar!

Percorria a parte das enciclopédias quando os nossos olhos se cruzaram pela primeira vez por entre o espaço entalado entre os livros e a estante de cima. Eu, taralhoco de calor em busca da iluminação lírica e ela, calma e serena a vasculhar os livros com a graciosidade de quem sabe onde encontrar tudo. Desviei o olhar por segundos... não a queria incomodar, mas a sua presença inquietava-me ao ponto de converter as minhas íris em magnetos que procuravam os elementos férricos do seu corpo. Ela era esguia mas de curvas acentuadas, tinha olhos negros como antracite sensualmente contrastantes com a palidez de uma pele que raramente partilhara o mesmo espaço com raios de sol. Deslizava elegantemente com as suas vestes de seda, percorrendo todos os livros com uma paz que parecia ser só dela. Olhou uma última vez para mim e desapareceu atrás do XII Volume da Enciclopédia Larousse. O meu relógio marcava as cinco horas da tarde e o sol rebelava com uma nuvem no distante céu. "Boa hora para ir para casa" pensei para comigo. Ao sair, vasculhei a biblioteca para ver se a encontrava... sabia que estava ali algures, mas simplesmente já não a conseguia ver.

No dia seguinte, decidi voltar à biblioteca. Não sentia a atracção pelos livros... era ela que me chamava para lá. Era manhã cedo e fui presenteado pelo aroma a jornais frescos assim que ultrapassei as portas giratórias. Procurei-a como um louco... secção a secção... no rés-do-chão e depois no primeiro andar. Cabisbaixo por não a ver em lado algum, decidi dar uma leitura pelas noticias do dia. Sempre achei muita fruta, de todas as pessoas que partilham o mesmo espaço com ela, apenas eu lhe ter chamado a atenção... Que burro ter perdido este tempo com sonhos totalmente irrealistas. Afinal, numa cidade com milhões de almas, qual a probabilidade de a tornar a ver? Mergulhei na crise económica e nos ensaios nucleares da Coreia do Norte e deixei o tempo passar. Aqui e ali, levantava a cabeça e batia os corredores na vã esperança de que o brilho dos seus olhos me guiasse como um farol. Ao meio-dia fui almoçar e entornei umas quantas garrafas de cerveja para o meu interior. Tornara a estar uma tarde desagradável com temperaturas extenuantes. Deambulei por umas quantas esplanadas e outros abrigos... analisando o conteúdo alcoólico de muitas outras garrafas de cerveja, enquanto procurava uma explicação plausível para uma tamanha pancada... uma paixão na biblioteca. Já tinha tido pancadas, é verdade... daquelas que nos roubam o pensamento e deixam-nos a ver um frame do mesmo filme durante horas e horas, tal moldura digital com erro de programação. O cedo virou tarde e o tarde virou noite... ligeiramente alcoolizado, decidi voltar para casa. Sentia amargura na boca, mas creio que foi dos pimentos que acompanharam a sardinha.

Manhã cedo, um novo dia e uma dor de cabeça de proporções homéricas percorria todos os lóbulos do meu cérebro. Aliás, creio que cérebro é uma descrição um tanto ou quanto megalómana para o aglomerado de células mirradas que se encontrava dentro da minha caixa encefálica nessa manhã. Vesti-me, tomei um forte café com a torrada da manhã e bebi meia garrafa de litro e meio de água só para revitalizar um pouco. Sentia-me grogue... do álcool e de curiosidade. Queria ver aquela criatura mais uma vez... só mais uma. Sentia-me um agarrado a uma qualquer droga. Tinha a necessidade de estar ao pé dela, mesmo que fosse apenas para me perder por uma fracção de segundo nos seus olhos. Odiava-me por ser mais forte do que eu, mas poderia dizer que de uma certa forma, nomeadamente em visitas a bibliotecas, ela já havia mudado a minha vida. Creio que me senti como Yuri Gagarine quando chegou ao espaço... grande e ao mesmo tempo pequeno. Corri para a biblioteca com determinação... o sangue dos Hunos corria-me pelas veias e apenas a visão dela, tamanha vitória, me poderia acalmar. Percorri os corredores tão tresloucadamente que eventualmente me perguntaram se poderia fazer menos barulho. De que me interessavam os exames de aferição... ou os exames nacionais. "Restrinjam-se à vossa vida insignificante, suas vis criaturas!" temo ter gritado a certa altura. Tremia... mas não era das caixas brancas estarem a debitar mais frescura do que o meu corpo poderia aguentar... não! Era nervos que me percorriam o corpo... sentia-me ressacado e desanimado por não a encontrar novamente. Respirei fundo. Aliás, não me lembro de ter inalado tanto ar em tão pouco tempo, durante toda a minha vida, e posteriormente a consequente libertação do mesmo, que diga-se de passagem que foi equitativamente grande.

Fechei os olhos e esperei por um sinal... um farol no pensamento que me guiasse até ela. Senti o ar... senti toda aquela amalgama de livros tornarem-se nada e vi-a finalmente. Lá estava ela, esplendorosa como no dia em que primeiramente a vi. Abri os olhos e dirigi-me para a secção de desporto. Com uma paz só dela, percorria os livros até achar um que lhe chamasse a atenção e perdia-se nele por uns momentos. Depois, emergia das suas páginas e voltava a bater os livros todos à procura de mais um ou outro artigo que lhe interessasse. Olhei-a durante horas... sorrateiramente, ora fingindo que estava a escolher um livro, ora lendo uma revista na diagonal. Por vezes desaparecia do meu campo de visão e via-me obrigado a mudar de mesa, escolher outro livro ou simplesmente passar por ela para a secção seguinte, tentando providenciar um eventual encontro.

Seguiram-se dias nisto... acabei por conhecer os seus hábitos. Todos os dias voltava e cada vez era mais fácil saber onde ela iria estar... qual o corredor... qual a secção... quais os livros que iria percorrer até parar, embrenhar-se um pouco e seguir caminho. Descobri que a sua vida se resumia à biblioteca. No fundo, era uma autodidacta com requintados gostos. Preferia os livros antigos aos novos... maioritariamente pelo aroma doce que brota das suas páginas amarelecidas pelo tempo; chegava a, poderei dizer, devorar dois a três bons artigos por dia, grande parte na área das ciências exactas, com as quais tinha grande empatia. Achava as revistas um tanto ou quanto sem sabor, rejeitando as suas páginas impregnadas em tinta, mas não fugia a um bom jornal do século XIX. Os seus olhos olhavam os livros com o mesmo brilho com que um estudante universitário olha para um mega Big Tasty com Coca-Cola e milhões de batatas fritas no dia seguinte à noite de Quim Barreiros na Queima das Fitas. Sim, esse brilho de salvação pela gordura, sal e cafeína que apenas certas coisas nos conseguem dar. Eu olhava para ela da mesma maneira, não que a quisesse comer ou algo assim, mas com alegria no olhar. Na verdade, nunca me aproximei muito dela, não queria perturbar o seu destino. Mas, de certa forma, o seu olhar dava-me a entender que ela tolerava a minha presença... que eu era aquela pessoa na biblioteca que finge ler e finge vasculhar nos livros apenas para poder estar ao pé dela mais um bocadinho. Sentia-me feliz. O Verão passou... depois veio o Outono e eventualmente o Inverno... Mantivemos-nos cúmplices de olhares e de um ou outro livro rasgado na pressa de o recolocar na prateleira. Os dias correram tal como eu corria para a biblioteca todos os dias. E que bons foram esses dias.

Por fim chegou aquele fatídico dia... Estava um frio acutilante e tentava organizar os meus pensamentos enquanto me encaminhava para a biblioteca sem perder nenhuma parte dos meus membros pelo caminho. Ela tinha estado estranha nos dias anteriores... como se soubesse que o frio e o gelo estavam para chegar. Parecia mais distante, de qualquer das formas feliz, mas olhava-me com aquele ar de quem tem de ir embora e não tem tempo para dizer "até já", "até logo" ou até mesmo "adeus". Tremia... não das caixas brancas que nesta altura regurgitavam calor, nem do frio que me havia enregelado partes do corpo que eu nunca sonhara que pudessem ficar enregeladas... tremia com medo de não a tornar a ver, de ler nos seus olhos um distante "desculpa". Via pela última vez nessa manhã... à tarde voltei lá mas não a consegui encontrar. Fiquei desolado. Transformei as minhas manhã de Inverno numa procissão. Levantava-me, comia algo, agasalhava-me, enfrentava os dez graus negativos do caminho, vasculhava a biblioteca de uma ponta à outra e voltava resignado para casa. Creio que foi o Inverno mais triste de que me lembro... bem, talvez não tão triste como aquele ano em que no Natal pedi um computador e um carro telecomandado e acabei por receber três packs de três pares de meias das raquetes, duas camisolas interiores de aquecimento e uns boxers de seda com smiles amarelos no rabo... mas considero-o o mais triste de qualquer das formas.

Chegara o equinócio de Março... dia vinte para ser mais preciso. Acordara normalmente... ok, talvez um pouco batido da noite anterior, mas não deixei de acordar normalmente (não levei com um balde de água, nem com pessoal aos saltos na cama, logo considero normal). Abri a janela do quarto para deixar o etanol sair e o agradável aroma a tubos de escape e flores primaverís entrar. Olhei o Mundo com aquele ar esgazeado de quem deve horas de sono à cama, necessita de um café bem forte e uma dose redobrada de almoço. Tomei um banho para acordar, vesti-me e algures na TV passou uma daquelas notícias de "O Inverno acabou! Viva a Primavera!". Olhei para o relógio que pouco passava das dez horas da manhã, olhei a janela e deixei-me levar... Um estalo na parte de trás do cérebro fez-me acordar para a vida. Primavera!? Deitei a torrada para o prato apenas com duas dentadas no miolo... creio que derramei o café na bancada (o gato estava acelerado demais quando voltei para casa)... e sai a correr porta fora. Objectivo? Biblioteca! Corri tresloucadamente, como quem corre a fugir de um enxame de abelhas assassinas que vêm dizer um olá matinal. Choquei contra o rapaz dos jornais, tropecei num Dálmata e num Setter de umas quaisquer damas da cidade. Se me deslocasse mais rápido, estaria certamente qualificado para os jogos Olímpicos... pode-se dizer que fiz jus à palavra correr. Cheguei à porta da Biblioteca. As suas portas exteriores encontravam-se fechadas. O porquê percorreu-me o cérebro diversas vezes... era Primavera, e eu tinha de a ver novamente! Havia taipais em torno da biblioteca, formando uma intrincada muralha à sua volta. Na porta, uma pequena folha A4 transmitia a informação que me trespassou como uma faca. Lia-se: "A Biblioteca encontra-se encerrada para obras. Lamentamos eventuais inconvenientes!". "Como podem lamentar eventuais inconvenientes se nem sabem que inconvenientes são?" pensei para comigo. Sentia-me perdido... certamente não tão perdido como se estivesse num armazém de 10 andares repleto de roupa feminina, mas aquele perdido de quem foi deixado a flutuar no espaço por uma qualquer missão espacial. Não a poderia ver. Nunca a havia visto em qualquer outro lugar que não aquela biblioteca e as batidas na porta da mesma apenas traziam trolhas que me enxotavam como se fosse uma mosca. Afastei-me relutantemente enquanto olhava sobre o ombro para todo o edifício, com a tinta descascada e janelas escancaradas a deixar fugir o pó levantado pelas máquinas. À sua frente, um pequeno jardim aguardava os meus lamentos. Refugiei-me num banco e contemplei ao céu com desagrado. Sabia que era a altura de a ver... mas não me deixavam. Estávamos presos em lados opostos da mesma porta.

A alguns metros, uma pequena borboleta pairava... batia as suas lustrosas asas de mil cores, as mesmas mil cores que preenchem os intervalos entre as sete cores do arco-íris, mas que por teimosia ou timidez não se querem mostrar. Senti algum conforto e sorri. A borboleta aproximou-se e só então me apercebi que toda aquela magia que estava à minha frente era a mesma que me prendeu durante tantos meses naquela biblioteca... a mesma que me fez sofrer durante o Inverno e a mesma que me fez cá voltar. "Tudo se transforma..." pensei. Tal como um prado seco e sem vida dá origem a novas ervas, e essas ervas a insectos, pássaros e afins... também aquela pequena lagarta dos livros que tanto contemplei se transformou para seguir o seu caminho. Era agora mais um dos espectros de cor e alegria que enchem as Primaveras. Por momentos, os nossos olhos se cruzaram... perderam-se na mesma cumplicidade que havíamos partilhado tantas e tantas vezes. Mas desta vez não transmitiram tristeza, antes uma alegria pelo reencontro e um obrigado pela companhia. Ela voou alto até se perder no céu. Fiquei a contempla-la até não mais a ver... voltei para casa. De certa forma, senti-me novamente feliz.

FIM

Shuri Kata