quinta-feira, dezembro 21, 2006

15º Capítulo - Estranhos pensamentos

Acordo exaltado. Uma pequena frase lateja na minha cabeça, como que uma réstia de sonhos macabros que não deseja sair do meu pensamento. “Chegaremos hoje…”. Lavo a cara e vejo um rosto conhecido já aos pulos na varanda. Maria aparenta estar bem alegre, brincando enquanto o sol se eleva. Visto a túnica e saio para tentar encontrar Abdul. Este encontra-se num salão outrora majestoso, actualmente transformado na sala de planeamento pelo governador. Já cá estão todos os meus companheiros de viagem, cada um ponderando e debatendo os pormenores de um possível embate. Sento-me um pouco mais afastado, comendo e tentando apagar da memória aquela frase tão curta mas perversamente perturbante. Abdul aproxima-se… Num movimento rápido atiro a sua bolsa. “Perdes-te isto?” pergunto. Abdul pára para pensar e sorri. “Não pensei voltar a ver isto… e sinceramente a ti também não!”. Fico estático. Abdul conta-me então tudo o que se passara com eles desde que nos separáramos. Porém, o que mais me intrigou foi o facto de, na sua narrativa, eu não estar com eles quando se deu o ataque. “Pensámos que eras um deles!” exclamou! Tulfah apercebe-se da conversa e aproxima-se. Olha directamente para mim e graceja desmesuradamente. Ainda estático com a cabeça às voltas e sem saber o que me tinha acontecido aquando do ataque, ouço novamente a mesma voz dos sonhos: “Preparem-se… Chegaremos Hoje…”. Tulfah dá-me uma sapatada que me faz voltar a mim. “…sim amigo… não sei o que realmente se passou mas cortava-te a goela se fosses um deles!” ri-se descontrolado. Ainda perturbado com a voz, peço desculpas e saio da sala. Já em outra sala, ouço Tulfah gritar: “Estava a brincar!... Que bicho lhe mordeu?”. Nem eu sei. Vasculho a minha mente para tentar perceber que voz é aquela. Nada… apenas o constante “chegaremos hoje”. Mas quem? Quem é que vai chegar hoje? Decido dar uma volta pela cidade para espairecer. Todos os outros se dedicam às tácticas e organização dos homens para o combate. Ainda é cedo, mas a azafama já invade as ruas. Balistas e catapultas são construídas, óleo é preparado, armas são limpas. Mulheres e crianças correm desenfreadamente para conseguir reunir o máximo de alimento possível para o que está para vir. Sinto-me vaguear. Tudo corre alucinadamente nesta cidade… tal como todas as coisas que me toldam o pensamento. Como é que eu desapareci se acordei exactamente no sítio onde me tinha deixado dormir? Como podem dizer que não estava lá? Não me terão visto? Por onde andei então, caso realmente tenha desaparecido? Sinto o familiar puxão de Maria nas minhas vestes. Pergunto-lhe como me encontrou. Para meu espanto, ri-se. “Não é muito difícil encontrar alguém à porta da casa do governador!”. E cá estou eu, estático… a poucos metros da praça principal. Nem dez metros percorridos? Por Alá… o que se passa comigo hoje?

sábado, novembro 25, 2006

14º Capítulo - Uma nova aliança

O olhar do governador torna-se grave enquanto lê a minha escrita. Na realidade, torna-se fulminante tamanha é a confusão em sua cabeça. Ao mandar chamar um guarda, ficamos em sobressalto. O facto de nos encontrarmos numa cidade não nossa, e estarmos oficialmente em guerra contra os almóadas, não nos deixa propriamente à vontade. Depois de algumas palavras o guarda abandona novamente a sala. Pouso a mão sobre a cimitarra e Maria calmamente refugia-se atrás de mim. Se houver sarilhos, teremos de sair daqui o mais rapidamente possível… o maior problema é atravessar o mar de soldados inimigos que se encontram no exterior. O governador tenta acalmar-nos. Decerto que a nossa identidade já fora descoberta, e acredito que a nossa proposta de ajuda na defesa o deve ter feito pensar bastante. Exclama: “A cidade é almóada, mas o povo sabe que os tempos dourados apenas se podem ver retratados pela pena dos poetas. Queremos a paz e a beleza de outros tempos. Considerem-nos vossos aliados contra este mal maior!” Fico em silêncio… Por momentos o espanto tolda os meus pensamentos, deixando-me ridiculamente como uma estátua sem o mínimo sopro de vida. Maria coloca-se à minha frente e sorri. “Tudo correu bem não foi?” pergunta alegremente com a sua infantil inocência. Neste momento, não tendo recuperado ainda a lucidez de espírito, entra o resto do meu grupo no palácio. O fedor que trazem é deveras insuportável. Compreendo que as catacumbas não deverão ser dos locais mais limpos da cidade, mas nunca pensei que pudessem cheirar tão mal. Tento evitar os abraços que tão calorosamente me tentam dar como forma de agradecimento. Abdul discretamente sussurra: “Temos de falar!”. Olho para ele como se não me tivesse dito nada e aceno ligeiramente com a cabeça. Há outras prioridades pela frente. Yusuf deverá ser alertado das ocorrências. Para a cidade resistir aos ataques, necessitamos de muito mais que cimitarras e flechas. Necessitamos de astúcia e estratégia. Essas duas qualidades estão mais do que reunidas no homem que nos trouxe nesta expedição. Peço por uma mesa, papel e pena, que me são prontamente disponibilizadas. Enquanto Maria repousa no meu colo, escrevo uma missiva para Yusuf, relatando tudo o que havia acontecido com o grupo. Akmer, o mais rápido batedor do grupo, pede-me que lhe conceda a honra de levar tão importante papiro. Tulfah, o “pequeno touro”, acena como sinal de aval. Estou certo que confiarão nas capacidades deste jovem. Parte imediatamente. O governador parece bem mais calmo e contente. São preparadas camas e comida para nós, dada a nossa subida do estatuto de espiões a convidados de honra. Amanhã começarão os treinos e outros preparativos para o embate. Acompanhado de Maria, dirijo-me para o quarto. Alá protegerá a cidade por mais uma noite.

quarta-feira, setembro 06, 2006

13º Capítulo - Más noticias

Olhamos as ruas à procura de feirantes menos bem dispostos… As túnicas assentam esplendidamente, mas a forma da sua aquisição é no mínimo criticável. Decido procurar mais informações com o governador. Se ele não suspeitar de quem somos, não creio que haja qualquer problema em responder a algumas perguntas. Percorremos ruas e ruelas, carregadas de gente cansada. Um burburinho enche o ar, proveniente das atarracadas casas que percorrem as ruas. Temem que depois da queda de Cadiz, a próxima a cair seja Huelva. Milhares de fragmentos de frases entram nos meus ouvidos. Porém, a junção desses mesmos fragmentos relembram-me contos de outras eras. Eras de destruição e poderosas criaturas que assolavam a minha amada Arábia. Avistamos a mesquita. Certamente que o palácio não ficará muito longe. Da pequena rua que percorremos surge uma enorme praça. Outrora majestosa e repleta de poetas, segundo descreve uma senhora, alberga agora milhares de soldados numa prontidão impressionante. Porém a sua prontidão não é de quem vá partir para a guerra, mas sim de quem está à espera que a mesma chegue. Atravessamos a praça com um ligeiro nó no estômago mas qualquer medida mais evasiva poderá denunciar-nos. Leio o terror na cara de muitos jovens que sentados no chão, vão limpando as suas armas. Não crêem na vitória pelo que me consigo aperceber. Terá a destruição de Cadiz sido assim tão grande? Poderá uma cidade cheia de soldados sucumbir tão rapidamente? Não pode ser obra de Al-Amiri e de Amir! O que quer que venha lá é decerto nosso inimigo também. À entrada do palácio o governador não aparenta calma nenhuma. O seu movimento frenético de um lado para o outro aparenta, isso sim, insanidade. Peço-lhe um pouco do seu tempo, algo que nervosamente ele dispensa. Quando lhe pergunto o que acontecera em Cadiz, o seu rosto torna-se grave e ligeiramente branco. Descreve uma história das antigas eras, aquando do aprisionamento de um talismã poderosíssimo nas grandes rochas de Gibraltar. Aparentemente, Alá aprisionou esse talismã por conter criaturas que o Homem não consegue controlar. “É negro… e negros se tornam os que o carregam!” clama o governador. Afirma que alguém o libertou e que a destruição alastra a cada dia. Teme que Huelva seja o próximo alvo. Tento compreender a gravidade da situação, apesar das minhas experiências sobrenaturais se limitarem à reza diária. Decido ajudar. Maria apresenta-se bem mais apreensiva. Quando informo o governador das nossas intenções de participar na defesa da cidade, ele ri-se loucamente. Entrego-lhe os papiros que tenho escrito. Talvez assim ele aceite a nossa ajuda. Alá trará luz a esta cidade.

sábado, agosto 26, 2006

Nota do Autor

A todos os leitores, um muito obrigado por continuarem a acompanhar esta criação. Devo-vos um pedido de desculpas pela demora entre o lançamento de artigos. Tentarei ser mais breve. Decidi dar nomes aos capítulos… digamos que “capítulo 2” não é um nome que nos remeta para o tema a tratar. Fiz também umas pequenas correcções nos textos. Desejo-vos uma boa leitura. Qualquer coisa é só comentar.

12º Capítulo - Huelva

A cidade aparenta uma decadência imunda. A grandeza das suas muralhas contrasta com a sua falta de preservação. O lixo acumula-se nos cantos sem a mínima preocupação de o limpar. Águas fétidas correm ao lado das crianças que brincam na rua. Mais uma vez consigo compreender os intuitos de Yusuf na conquista da península. Os efeitos da guerra prolongada são novamente evidentes, tanto na cidade como na sua gente. As pessoas que passam por nós aparentam um cansaço extremo. É com estas cidades fragilizadas que contamos para uma mais rápida expansão. Porém, esse assunto neste momento é apenas secundário. Temos de encontrar o resto do grupo. Percorremos a rua principal da cidade. O mercado está apinhado de gente. Maria, com o seu incomparável sorriso, faz-me uma pergunta que em todo me parece desapropriada para o momento: “Qual a tua cor preferida?”. A palavra “Azul” foi seguida de um rápido “Já venho!”. Fico estático ao ver aquela pequena miúda desaparecer na multidão. Ocorre-me que talvez não a volte a ver, mas em parte sei que aquela alma está cheia de surpresas. Vasculho a feira em busca dela mas essa mesma busca revela-se infrutífera. Encolho os ombros e sigo caminho. Uma bancada de kebab chama-me a atenção. Tenho as moedas de Abdul que poderei sempre usar. Estou certo de que não se importará. De barriga cheia, guardo outro kebab para a Maria. Se tornar a aparecer, saber-lhe-á bem. Entre os feirantes, procuro informações, ou pelo menos algo concreto a que me possa agarrar nesta busca. Na maior parte dos casos, em pouco ou nada me podem ajudar. Sinto um puxão na túnica que me é de todo familiar seguido mais uma vez de uma simples frase: “Vem… rápido!”. O alarido que provem da multidão agoira algo. Corremos loucamente pelas ruas labirínticas, até que uma pequena ruela nos servir de abrigo. Com um sorriso comprometedor, Maria estica-me uma túnica e um turbante de um azul indescritível. “É a tua cara!” exclama vigorosamente. Para ela, uma bela túnica laranja transmitia um eterno pôr-do-sol. Os olhos de Maria demonstram alegria enquanto se delicia com o kebab. Falando de boca cheia, conta-me o que ouvira no mercado sobre um grupo de homens armados, capturados esta manhã. Parece que procuram um outro soldado. Está claro que se trata do meu grupo. Segundo Maria, encontram-me na prisão aguardando interrogatório. Comenta algo sobre a destruição de Cadiz que em tudo me desperta a atenção. Consideram o meu grupo como parte do exército que esmagou essa cidade. “Talvez espiões!” afirmavam eles. Fico confuso. Não creio que sejam piedosos com soldados inimigos, e como tal, devo agir o mais depressa possível. Algo está muito mal e eu tenho de descobrir o que é. Alá dar-me-á forças para esta missão.

quinta-feira, agosto 03, 2006

11º Capítulo - Maria

A caminhada não se aparenta árdua nem interminável. A estrada percorre apenas algumas colinas antes de embater nas fortes muralhas de Huelva. Vou saboreando as laranjas que colhi enquanto me tento recordar do que aconteceu. Mas afinal o que aconteceu? Enquanto vasculho inutilmente o meu cérebro em busca de respostas, sou interrompido por um leve puxão na túnica. Ao voltar-me uma pequena rapariga esbugalha dois mares na minha direcção. As suas vestes rasgadas demonstram uma vida privada de luxos e talvez repleta de maus-tratos. Estico-lhe uma laranja… a sua reacção é nula. Encolhendo os ombros, retomo novamente a esguia estrada. Novo puxão e reencontro os mesmos olhos abertos parvamente. Desta vez, a sua pequena boca abriu-se levemente pronunciando um simples e intrigante: “eram teus amigos?”. Após uma resposta afirmativa, comecei a bombardear a rapariga com perguntas sobre o seu paradeiro. Apesar de não saber onde se encontram, afirma que os homens que os levaram eram soldados da guarda da cidade. Aparentemente a nossa chegada aqui havia sido previamente alertada. Algo voltava a não bater certo. Se partimos de Faro em relativo secretismo, como foi possível armarem-nos uma cilada tão prontamente? Menciono o acontecido pouco tempo antes enquanto dormia, procurando encontrar respostas a algumas perguntas das muitas que deambulam na minha mente. A resposta, bem distante daquela que esperava, é um sorridente “vou-te ajudar!”. Encaminhamo-nos para a cidade. Pelo caminho, falamos alegremente, em parte devido à excelente disposição de tão viva miúda. Aparentemente abandonada à nascença, Maria fugiu de um convento no norte da península. Cristã de origem, foi deambulando rumo ao sul, roubando para sobreviver, em busca de riqueza e paz. Afirma apenas ter visto os guardas levarem o resto do grupo, mas a sua alma sabe mais do que a sua boca fala. O seu infantil secretismo revela a incompreensão de algo visto. Sei que independentemente do eu seja, haverá palavras que o expliquem. Talvez ainda não se sinta inteiramente à vontade para falar nisso. Decido respeitar a sua posição, apesar de saber que vai atrasar a compreensão de muitas coisas passadas. Pouco falta andar para chegarmos à patrulha da ponte, quando lhe acabo de contar todas as minhas aventuras ao lado de Yusuf. Os seus brilhantes olhos e o sorriso rasgado demonstram admiração. Paramos a uma distância segura para combinar a melhor maneira de não levantar suspeitas. Poeta e aprendiz aparenta ser uma razoável desculpa para entrar na cidade e os papiros que trago comigo servirão de prova. Decido rasgar um pouco a roupa para que a discrepância de vestuários não seja tão evidente. Poucos minutos volvidos, e encontramo-nos frente a frente com os guardas. Ocupados com todos os homens que aparentam porte de guerreiro, deixam-nos passar sem muitas perguntas. É fácil discernir que andam à procura de alguém. Conhecendo esse alguém, agradeço pela primeira vez na vida a Alá, o facto de me terem avaliado mal.

quinta-feira, junho 15, 2006

10º Capítulo - Confusão

Mantivemo-nos em silêncio durante quase todo o caminho desde que atravessámos o belo Guadiana. Huelva sobressai no horizonte agora rasgado pela claridade que antecede o nascer do sol. Os tons alaranjados dão à paisagem uma sensação de calma, invulgar por estas paragens. Parece que a guerra não passa de algo inventado apenas para fazer esquecer a beleza do mundo. Com aprovação de todos, decidimos descansar umas horas, enquanto o sol não está alto. Os cavalos bebericam no regato que corre a pouco metros de nós, enquanto a leve brisa agita a erva onde nos sentamos. Pássaros voam alegremente, como se as batalhas já travadas naqueles campos nunca tivessem acontecido. É incrível apercebermo-nos da efemeridade dos actos humanos, de como um dia o Homem deixará de fazer parte deste cenário mas tudo o resto continuará a existir. Corre-me na mente a probabilidade de sermos o único ser vivo com a capacidade de se extinguir a ele próprio. Envolto em pensamentos, adormeço. Acordo com o sol a bater-me fortemente na cara. Com os olhos ainda embriagados de sono, busco pelos meus companheiros, mas de nada me vale. Desapareceram… e com eles os cavalos. Sinto uma forte frustração enevoar-me o raciocínio. Sento-me para pensar. Perscrutando o local onde tinha adormecido, vejo uma bolsa de couro. Num dos lados, consegue-se ler “Abdul” gravado a letras douradas. Pelo que me lembro da nossa curta viagem, Abdul é um jovem alto, rigidamente marcado pela guerra que apresentava uma profunda cicatriz no rosto, proveniente de alguma batalha antes travada. No seu interior, algumas moedas de ouro e outros pequenos pertences que jamais alguém deixaria para trás. O corrupio desenhado na erva demonstra mais gente do que aquela com quem vim. Algo se passou enquanto dormia… algo estranho, que sinceramente não consigo compreender. Estou certo de que fizeram barulho! Como foi possível não os ouvir? Estaria demasiado cansado? Se partiram sem mim, porque o fizeram? Se alguém teve aqui e os levou, porque não me levaram também? Não aparento eu ser um homem de armas? Sinto a cabeça a andar à roda com tantas perguntas sem resposta. Toco o meu amuleto procurando fugir a toda a confusão que me inunda. Vasculho a área envolvente à procura de outras pistas… mas não consigo encontrar mais nada. Toda a calma que me rodeia torna-se enervante. Até a minha cimitarra levaram! Sete moedas de prata são o único peso da minha bolsa. Após colher algumas laranjas, faço-me sozinho à estrada. Apenas Alá saberá as aventuras que me aguardam.

sexta-feira, maio 26, 2006

9º Capítulo - Caminho para Huelva

A noite aparenta ser longa e o caminho nada fácil. Como o vento, corremos velozmente por entre belos pomares e searas. Os vultos das amendoeiras acompanham-nos durante grande parte do caminho. Dada a urgência da missão, apenas podemos fazer pequenas pausas pelo caminho. Teremos tempo de descansar já em território inimigo. Do grupo, apenas um dos cavaleiros vai a meu lado, tentando manter conversa. É baixo e robusto; “Pequeno touro” é como lhe costumam chamar. Almorávida de nascimento, mas almóada de espírito, agradece-me várias vezes pelo facto de ajuda ter chegado. Segundo os seus relatos, a Península encontra-se decadente faz já uns anos. O grande reino do Grab-Al-Andaluz terminara ainda ele era criança. Com a queda do Xeque, a separação do reino em califados foi imediata. Os califas, sedentos de poder, nem o próprio sangue pouparam. “Árabes contra árabes”, conclui triste. De facto, é exactamente esse problema que assola o Al-Andaluz e que nós tentaremos explorar. O ódio entre califados aumenta de dia para dia, tanto enfraquecendo almorávidas como favorecendo cristãos. Deixando a conversa, procuro no horizonte um sinal do caminho que devemos seguir. Um reflexo amplo, mas ténue vai sobressaindo ao longe. Começamos a descansar os cavalos que já muito cavalgaram desde que partimos de Faro. A noite continua escura, mas bem estrelada. Fomos detidos pelo Guadiana; grande rio, pelo que aparenta. A única forma de o atravessar é numa barca de um veterano de guerra. Ex-combatente na grande frente leva agora uma vida pacata nas margens deste rio. Creio que não causará grandes problemas e em troca de umas moedas de ouro, estou certo que o seu silêncio e o meio de transporte serão comprados. Enquanto atravessamos calmamente o rio, vamos combinando locais para repousar. Huelva, uma cidade a pouco mais de umas horas de corcel, será o nosso primeiro local de paragem. Teremos de nos fazer passar por almorávidas, o que no fundo não é tarefa assim tão árdua. De Huelva partiremos para Cadiz, um pouco mais a sul. E com sorte, conseguiremos atingir Gibraltar ainda antes do final do segundo dia de viagem. Os pobres animais que nos carregam terão de ser trocados em ambas as cidades, de forma a não termos de fazer paragens extra. Em pouco tempo, o agradável e relaxante som da água a correr alegremente pela barca dá lugar ao rude som da areia que roça o casco. A partir daqui, apenas Alá nos poderá proteger.

domingo, abril 16, 2006

8º Capítulo - O inicio de uma demanda

Um jovem ensanguentado entra na sala onde nos encontramos. Carregado a ombros por dois guardas, vem pedir auxílio por Gibraltar. Yusuf ainda se encontra ocupado com o governador, mas a sua conversa terá de ser adiada para mais tarde. Pelo que consigo ouvir da outra sala, o jovem batedor fala de um poderoso ataque surpresa à fortaleza, por parte de forças vindas do norte de África. O desfecho da batalha era tanto para ele como para nós desconhecido. Como um relâmpago, Yusuf dirige-me a palavra. Quer que encabece um grupo de batedores para averiguar tanto quanto possível da batalha. Acenei afirmativamente, enquanto olhava desconfiado para o jovem batedor. Não conseguia compreender o motivo do pedido de auxílio ter vindo parar a Faro. Estou certo de que haverá cidades mais próximas de Gibraltar… algo não está certo, mas terei tempo para investigar. Enquanto arrumo os bens a levar, Salem estica-me a mão, soltando um pequeno amuleto em tons lápis-lazúli. Afirma ser uma pequena protecção contra o mal e que apenas os puros de coração o sabem usar. Recuso a oferenda delicadamente mas de nada me vale. Salem parece determinado que eu leve este pequeno colar. Guardo-o na bolsa enquanto me atarefo a preparar as rações para a viagem. Viajaremos ligeiros para não cansar muito os cavalos, razão pela qual não devemos levar nada para além da comida e da cimitarra. Pouco falta para o crepúsculo que antecede a noite. No exterior do palácio, seis nobres cavalos aguardam os seus cavaleiros. Somos poucos em número, mas vejo no rosto daqueles que me acompanham que não são novos neste tipo de aventuras. As marcas que alguns ostentam com orgulho aparentam ser resultado de anteriores incursões em território inimigo. Recebemos pouca informação por parte do batedor ensanguentado. Torna-se complicado prever a localização de tropas almorávidas, sabendo do seu constante movimento para as frentes de batalha com os cristãos. Yusuf apressa-se a entregar-me um pergaminho. No caso de vitória, deverei entregar estas informações ao mais graduado oficial almóada. Sinto o receio atormentar-lhe o coração, e compreendo-o perfeitamente. Enquanto somos presenteados com os milhares de tons que fazem prever uma noite limpa, partimos calmamente em direcção à muralha exterior. Somos acompanhados por inocentes crianças que nos incentivam. Pouco antes de abandonar a cidade, olho para trás e desejo não a ter de abandonar. Com o braço no ar despedimo-nos daqueles que ficam para trás, partindo rapidamente a galope em direcção à escuridão e ao desconhecido. Tocando o amuleto, sinto conforto. Alá será protector nesta nossa louca viagem.

domingo, março 26, 2006

7º Capítulo - Faro

Acordo sobressaltado. Um frenesim de vozes enche o ar que rodeia o navio. Salem entra na camarata eufórico. Finalmente chegámos a Faro. Levanto-me num ápice, tamanha é a minha ânsia de conhecer gente nova. Cá fora vislumbro um novo mar, um imenso mar de gente diferente. Comerciantes almóadas, com imensas mercadorias do norte de Africa, fazem o seu negócio em terras por nós pouco conhecidas. Yusuf emerge enérgico do seu camarote. Também ele se sente contagiado pela doce melodia vocal de uma nova cidade. Ao descermos a rampa, que nos dá acesso ao cais, apercebemo-nos da comitiva que nos aguarda. O governador e a sua guarda aproximam-se agilmente parando a poucos metros de Yusuf. Após poucas palavras e alguns cumprimentos, seguimos escoltados para o palácio. No rosto dos soldados que nos rodeiam consigo distinguir alivio. A desorientação governamental fez com que os estados muçulmanos perdessem uma grande porção de terra para os cristãos, levando à crescente inquietação popular. A chegada de Yusuf à península leva a que o povo volte a acreditar na paz e serenidade no Al-Andaluz. Enquanto caminhamos, vou observando as ruas e as suas casas. Caiadas, casas geométricas estendiam-se ao longo da cidade, pontuadas por mesquitas. Perto do centro da cidade, um único monumento cristão. É um sinal harmonioso demonstrativo da tolerância religiosa, sempre respeitada na península. É de certa forma uma maneira de cativar os cristãos a permanecer em terras a eles conquistadas. Yusuf conversa durante quase todo o caminho com o governador. Salem, pelo contrário, delicia-se com a beleza das mulheres desta cidade que com a sua exótica presença nos presenteiam. Grupos embriagados de mercenários cantam não muito longe daqui. Ao fundo da rua surge o palácio, altamente ornamentado e de estrutura ampla. Os grandes pórticos enunciam a grandiosidade que outrora tivera esta cidade. Música acompanha as nossas passadas ao longo da sala principal. A alegria contagiante aconchega-nos a alma, como se estivéssemos novamente em casa. É bom estar com esta gente. As conversações entre Yusuf e o governador parecem durar horas. Enquanto um dos guardas rói as unhas, o outro parece não saber que parte da veste lhe faz mais comichão. Todos nós procuramos algo com que nos entreter. O ambiente passou de calmo a “de cortar à faca”. Uma simples palavra pode mudar o rumo dos acontecimentos, e aparentes amigos voltam a ser novamente inimigos. Alá premiará a nossa paciência.

domingo, março 05, 2006

6º Capítulo - Interminável mar

Partimos com o raiar do dia. Penetrando a matinal neblina, o alegre aroma da maresia toca-me a alma. Ainda agora a deixamos e já lhe sinto saudades. “Rumo à Europa” exclama aventurosamente Yusuf. Sinceramente, receio esta nova aventura. Enquanto vacilamos de um lado para o outro, contrariando o balançar do barco, podemos contemplar o enorme mar Atlântico. Gaivotas acompanham-nos planando sobre o mastro. Avizinha-se uma longa jornada e todos procuram com que se entreter. O barco apresenta um comprimento reduzido para combate, mas os esforços de Amir permitem agora uma viagem sem grandes percalços. Yusuf parece irrequieto. Passeia-se de um lado para o outro do barco, tamanha é a sua preocupação. Bem cedo, despediu-se de Amir e Al-Amiri, como se jamais os voltasse a ver. Alá decidiu separar o que um dia uniu. Yusuf teme um eventual reforço da praça-forte de Gibraltar, durante a travessia dos seus amigos, reforço esse que poderia comprometer toda a operação, pondo em risco as suas vidas. Com o mar suave como a seda, marinheiros alegram-se no convés, cantando histórias de gloriosas batalhas por eles travadas. As princesas berberes rodopiam freneticamente ao som da música... que magnifica visão. Entre a dança e a cantoria, todos querem saber dos grandes feitos de Yusuf. Por momentos, a calma reina no nosso pequeno navio. Yusuf pode ser um grande guerreiro, mas é também um hábil contador de histórias, e neste caso, provavelmente o melhor que se encontra a bordo. Juntamente com Salem, Yusuf narra as suas conquistas no Egipto, Tunísia, Argélia e Marrocos, tanto as pacificas como as mais sangrentas. No meio de mil aventuras e tentando mostrar-se desinteressado, o capitão guia-nos rumo a norte, para mais perto da costa do Grab Al-Andaluz. Ao longe, começo a distinguir enormes florestas, presenteadas em curtos intervalos por vivazes pomares de laranjeiras. Compreendo as intenções de Yusuf em querer controlar a península. Ao contrário do norte de Africa, estas terras são ricas e deveras bastante produtivas. Os rios são numerosos e pela sua foz, aparentam ser imensos. De sudoeste, os ventos marítimos trazem humidade, tornado esta terra fresca e temperada. Caminho para a proa, procurando vislumbrar algo mais no horizonte. Sem que me aperceba, Salem pára a meu lado. Num tom divagante, fala-me das muitas civilizações que habitam e disputam o Grab, das magníficas fortalezas e poderosos castelos, de vastas planícies e altas montanhas, florestas imensas e numerosos povoamentos, de animais e plantas jamais vistos. Enquanto a noite se aproxima, dou por mim a sonhar acordado, imaginando todas as coisas que amanhã espero ver estando certo porém, que Alá permitirá que as veja.

sábado, fevereiro 11, 2006

5º Capítulo - Separação

O tempo passa, e com ele passa também a calmaria. Notícias do desmembramento do Grab Al-Andaluz chegam a Ceuta. Correm boatos de que o progressivo desentendimento entre almorávidas levou à formação de pequenos califados na península. Leio a frustração estampada no rosto de Yusuf. Ele reconhece que o fragmentar dos seus inimigos é prejudicial à causa de Alá. Fragilizados, os califados serão tomados pelos cristãos num abrir e fechar de olhos. Como se não bastasse, a sua mediocridade leva-os a guerrearem-se constantemente, não tomando atenção aos inimigos do norte. Yusuf sabe que tem de tomar uma decisão o mais depressa possível. É desejo de Alá que Šanta Māria al-Hāarun, conhecida por Faro, seja tomada por Yusuf e Salem, enquanto que Gibraltar ficará entregue a Amir e Al-Amiri. Yusuf permanece em meditação durante dias. Compreendo que a sua separação de dois dos seus melhores amigos seja um golpe bastante duro mesmo para um cão de guerra. Decidi partir com Yusuf e Salem dentro de dias, numa secreta missão diplomática a Faro. Começam os preparativos para as viagens: carregamentos de gado e cereais, marfim, ouro e diamantes, juntamente com algumas princesas berberes, serão oferendas certamente bem recebidas pelo califa almorávida. Por outro lado, Amir e Al-Amiri têm uma missão de cariz militar. Gibraltar é uma fortaleza importante nos planos de Yusuf. A uma pequena distância de Ceuta, Gibraltar é a ponte para uma ofensiva a larga escala por parte dos almoadas. Deverá ser tomada de noite, com o desembarque das tropas a oeste da mesma. Sabe-se que os constantes conflitos entre califas têm requisitado muitos homens para a frente de batalha e como tal, espera-se que Gibraltar possa ser assaltada desprevenida. As movimentações militares começam em peso, com grandes quantidades de madeira e armas a serem levadas para o porto. Amir é um bom comandante e Al-Amiri um estratega nato. Rumarão direitos a Gibraltar em navios mercantes, construídos de forma a não levantarem suspeitas. Yusuf nomeia como governador Yaqub, seu amigo de longa data. Yaqub bateu-se muitas vezes em batalha ao lado de Yusuf, apesar de não passar de um letrado. É um homem de bom coração que não olha a meios para punir injustiças. É ele que tem como função manter a logística dos exércitos que serão enviados para a península e posterior comércio com as futuras colónias. É decretado um dia de festa em homenagem àqueles que partem... e a noite avizinha-se calma e alegre. Olhando as estrelas, lembro-me dos tempos em que passava as noites entregue à poesia e à música, deliciando-me com belas mulheres e bom vinho. Amanhã partirei, e apenas Alá sabe o que nos espera.

domingo, janeiro 15, 2006

4º Capítulo - Paz

Regressam os tempos de paz. Alá é grande ao permitir o nosso descanso. Yusuf aceita todas as rendições almorávidas de forma justa, permitindo a sua permanência em Ceuta. Ele vê esta cidade como um ponto crucial e como tal deve ser reconstruída e militarmente fortificada, contando para isso com a colaboração dos seus antigos residentes. Ao longo de meses, mestres-de-obras chegam a esta cidade carregados de matérias-primas, na esperança de que com a permissão de Yusuf, possam aqui ganhar algum dinheiro. Através das rotas com o Oriente o comércio floresce. Caravanas chegam diariamente fornecendo a cidade com bens essenciais como mel, vinho, tecidos e cereais. No porto, agora aumentado, ergue-se uma estátua de Amir em homenagem à sua gloriosa vitória sobre a frota almorávida. Não se vê miséria... os fracos são amparados pelos fortes. A mesquita é reconstruída usando o mais branco mármore e artistas esforçam-se por concluir os murais de azulejos. As habitações são reparadas e as ruas arranjadas. A muralha, esmagada pela ofensiva de Yusuf é aumentada, permitindo assim mais espaço para o crescimento da cidade. Terras são roubadas ao deserto de forma a desenvolver a agricultura. Jamais Ceuta viu tamanho movimento e variedade de raças e culturas. Do norte de Africa, carregamentos de cacau, marfim, ouro e diamantes enchem os olhos de quem aqui vive, embelezando e enriquecendo esta nobre cidade. Os jardins são imensos, verdejantes e cheios de vida. Do mar, os pescadores trazem infindáveis espécies de peixes. É, deveras uma bela cidade... brilhante, demonstrando todo o seu esplendor. No centro, logo ao lado da reconstruída mesquita, encontra-se o palácio do governador. Nele, Yusuf passa os seus dias, tanto administrando a cidade como entregando-se às artes. A riqueza da cidade atrai poetas, pintores, escultores e outros artistas em busca de algum dinheiro por aquilo que melhor sabem fazer. Vivem-se tempos doces, em que a memória dos tempos almorávidas cai em esquecimento, ofuscada pela opulência deste jovem império.
Aproximam-se novos confrontos... disso tenho a certeza. A ambição de Yusuf não permitirá que nos mantenhamos aqui por muito mais tempo. Resta-nos aproveitar as boas graças de Alá.

sábado, janeiro 07, 2006

3º Capítulo - Queda de Ceuta

Já se passou um mês desde o início do cerco a Ceuta. O constante bombardeamento da cidade reduz a vontade de lutar de quem ainda tem força para segurar uma espada. Têm sido dias duros para muita gente dentro daqueles grandes muros de pedra. O bloqueio do porto por parte da frota de Amir, comandante da armada almóada faz com que os mantimentos escasseiem. Qualquer tentativa de abandono da cidade é punida com morte, enquanto o governador não a entregar. As tropas de Yusuf começam a ficar irrequietas. Homens talhados pelo sangue e pela guerra não se contentam com a paz. O próprio Yusuf parece preocupado... uma grande força almorávida foi vista a sair de Granada em direcção a Ceuta. A cidade deve ser tomada antes da chegada de reforços. Será uma catástrofe caso tal não aconteça. A brisa da tarde trás o aroma do mar, uma leve maresia misturada com um pérfido cheiro a queimado. Salem e Al-Amiri falam com as tropas. Os aríetes estão prontos há dias, as catapultas têm as cordas bem secas e os trebuchets já massacram a cidade desde o primeiro dia de cerco. É hora! Al-Amiri monta o seu cavalo e parte. Salem reúne os seus homens e distribui as tarefas para a ofensiva. Escadas e grandes protecções em verga para os homens da frente, atrás os aríetes apoiados por arqueiros e por fim as catapultas. Yusuf monta o seu cavalo, passa uma breve revista ás suas tropas e dirige-se para a retaguarda. É de lá que comandará todas as operações. O tempo passa sem as tropas se mexerem um metro que seja. A ansiedade percorre as fileiras enquanto a ordem não for dada. Um cavalo branco percorre as dunas à direita de Yusuf... é Al-Amiri com boas novas: Amir começou o ataque ao porto. Como uma onda num mar tempestuoso, a notícia espalha-se... não é necessária qualquer ordem. Até o mais inexperiente sargento das fileiras almoadas sabe o que fazer. As catapultas lançam as suas cargas contra as muralhas desfazendo tudo e todos. Salem, protegido pelas protecções leves mas resistentes de verga, empenha-se por chegar junto das muralhas. Ao seu lado, toda a linha da frente avança, mas não sem haver perdas. Os aríetes carregam desenfreadamente em direcção à porta. Engenheiros apressam-se a elevar as escadas contra as muralhas, escadas essas que permitirão a sua subida do exército de Yusuf. Setas voam em todas as direcções apanhando os mais desprevenidos. Os aríetes estão à porta... óleo é atirado das torres queimando os homens que os manobram. A luta é frenética e sangrenta. Yusuf e a sua cavalaria aguardam enquanto na muralha os seus homens lutam pelas melhores posições de combate. A porta cede e Yusuf sorri. Ao lado de Al-Amiri, carregam sobre os defensores, entrando pela cidade. O porto já caiu após grande esforço de Amir. Ceuta cairá ainda hoje. Alá abençoou este glorioso dia.